Quinta-feira, 20.10.11

Se bem se lembram na parte I, Jean e Joanne ficaram a "apaixonar-se". esta é a parte final do texto que enviei para o concurso de escrita criativa há uns tempos. O resultado foi mau! não venci. e irónico, fui eu quem divulgou isto em São Jorge pois era o único inscrito uns dias antes :-) ...sinceramente fiquei triste. os segundos antes de abrir o email com a novidade estava ansioso, depois de ver o resultado, estremeci, e fiquei triste. Parece estúpido mas foi assim! confesso que quase chorei, não o fiz por vergonha do meu cão que estava a olhar para mim. grande amigo! enrolei um cigarro e fui à rua infernizar a mágoa com o fumo do cigarro.

 

(...)

 

Jean declarou que tinha reparado na presença dela quando entrou no bar. Disse-lhe que notou o gesto da face encostada ao vidro. Joanne explicou que nesse momento estava a tentar ouvir o mar, imaginando-o enquanto via a espuma branca que surgia nas pedras negras.

Numa tentativa deliberada de lhe agradar, Jean propõe que fossem os dois mais perto do mar. A reacção de Joanne, sorrindo abertamente, agradou-lhe e também ele sorriu.

Levantaram-se e saíram lado a lado. Não se tocavam mas sentia-se o calor nos corpos de ambos pela proximidade.

Perante a situação, os amigos de Jean interrogavam-se entre si. Estavam pasmados perante os acontecimentos. – Mas como foi isto acontecer? Estivemos aqui e não reparámos em nada.

Rapidamente a sua curiosidade desvaneceu e continuaram na conversa.

Agora os dois dirigiam-se calmamente para junto do mar. Havia estrelas no céu, o seu brilho iluminava-lhes o caminho. Joanne exclamou que em Paris não tem tantas estrelas como os Açores – São lindas! (sorrindo de contentamento).

Naquela noite de Verão, sentados junto ao mar os dois poderam contemplar a luz cintilante das estrelas, o rasto da lua branca e bem definida que se desenhava no horizonte e ouvir e sentir a espuma do mar quando embatia na pedra redonda mesmo à sua frente.

Voltaram a perder as horas. Era tarde, sabiam-no. Havia pessoas em frente à porta do bar. Ao longe formavam pequenos círculos de figuras que se agitavam na claridade oferecida pelas luzes da praça. Jean procura o relógio que o seu pai lhe oferecera quando fez oito anos. Era um relógio de prata, tinha pertencido ao seu avô, finamente decorado mas que a noite não deixava definir os motivos. Um objecto pelo qual Jean tinha uma elevada estima. Afectivamente era a ligação emocional ao seu pai.

Viram as horas e perceberam a origem das figuras iluminadas na praça. Dois grupos distintos que a claridade da praça unia e que entre conversas e risos, olhavam à volta como se esperassem que algo acontecesse ou alguém fosse aparecer. Eram os amigos de ambos.

Sabiam que a noite, aquele momento iria em breve chegar ao fim. Olharam lentamente um para o outro e ao mesmo tempo – gostei de estar contigo a ver o mar. Ao reparar que tinham tido a mesma ideia, soltaram uma longa gargalhada, que os voltou a unir, aos dois, ao mar agora ainda mais macio e sereno que espelhava o fulgor da lua.

Jean levantou-se e esticou a mão para Joanne. Foi a primeira vez que os dois sentiram a gentileza das suas duas mãos juntas, apertadas.

Caminhando, quase sempre, em silêncio percorreram o caminho de volta até à praça. Ele de mãos nos bolsos e ela acariciando docemente o cabelo.

Ali estavam os seus amigos. Já ansiosos da espera. Ninguém falou. Como se tivessem compreendido, aceitando, a solenidade do momento de Jean e Joanne. Seguiram direcções opostas e em breve a claridade da praça foi substituída pelas luzes aqui e ali dos candeeiros altivamente dispostos nas paredes, até ao ponto em que apenas se viam na memória que ficou daquela noite onde, juntos, viram o mar.

Pela manhã Jean partiu de barco para a Graciosa. Anormalmente a viagem foi-se aproximando da encosta Norte de São Jorge. O dia está soalheiro, corria uma leve brisa que agitava as memórias de Joanne horas antes. Tinha passado muito tempo, demasiado talvez para a vontade de Jean. Durante a viagem pensava quando seria a próxima vez que estariam juntos?

O barco estava bastante próximo de São Jorge, era fácil perceber os recortes da encosta da ilha. Jean, no seu ávido impulso de conhecer as ilhas, resgata histórias antigas que a mãe que contou. Ali sob o sol que começava já a incomodar recorda-se da mãe lhe disser que São Jorge era conhecida como a ilha do dragão. Agora entendia porquê.

São Jorge mostrava-se no seu esplendor. Denunciava o dorso do dragão que irrompia sem peias do fundo do oceano. Verde-claro, outro verde mais escuro, cascatas que terminam na imensidão do mar e as árvores. Jean reparou que as copas das árvores são moldadas pelos ventos. Mais à frente é surpreendido pelo aparecimento de pequenas áreas de terra ao nível mar, dava para ver que eram habitadas. Virou a cabeça para trás e pergunta a uns dos primos – como se chamam aquelas terras ali? De pronto o primo responde – são as fajãs de São Jorge. São muito frequentes na ilha. Antigamente eram mais de 70 mas hoje em dia muitas delas estão abandonadas. Causas naturais e a emigração têm levado muita gente a deixar de viver lá. Essa que estás a ver é a Caldeira de Santo Cristo, ali à frente é a fajã dos Cubres.

Jean reconhece esse nome e de imediato volta a questionar sobre o nome dessa fajã. O seu primo, abeirando-se dele explica-lhe que Cubres é o nome de uma planta tintureira, antigamente era muito utilizada como corante para tecidos. A fajã tem aquele nome por ali existia muita abundância dessa planta.

- Então e como é que as pessoas chegam até ali. Há estradas?

- Sim, algumas delas sim. Mas outras só se conseguem alcançar através de caminhos antigos e carreiros pedestres. Se quiseres conhecer, depois de ver os primos podemos ir visitar algumas. Eu tenho amigos que vivem numa fajã mas é do lado sul, é a fajã de São João.

As histórias que o primo lhe contou deixaram-no curioso em relação as fajãs de São Jorge. Tinha consigo um guia que tinha conseguido num posto de turismo, sentou-se e começou a ler as informações que tinha acerca da ilha do dragão.

A viagem foi rápida. Jean nem deu pelo tempo a passar. Na Graciosa estavam os outros primos à espera, ansiosos por conhecer o primo parisiense.

Permaneceram na ilha Graciosa durante três dias. Os novos primos tornaram-se ao mesmo tempo nos seus bons cicerones, levando-o à descoberta da sua ilha. Mostraram-lhe as belezas naturais, o património e tudo o que a curiosidade de Jean despertava.

Na última noite na Graciosa, depois de jantar, Jean recolheu-se mais cedo. Apesar de estar feliz tinha saudades dos seus pais.

Estava cansado, sentia o corpo pesado mas não conseguia dormir. Sempre que fechava os olhos lembrava-se de Joanne. Tinha saudades do seu sorriso e a incerteza do reencontro inquietava-o.

Num pulo saiu da cama, vestiu-se rapidamente e saiu. Não sabia muito bem onde ia mas queria ir, era de noite e o brilho das estrelas apelava às memórias recentes. Num sítio isolado, parou e sentou-se calmamente, olhou em frente e viu o mar. Percorreu todos os momentos que passou junto de Joanne e, finalmente após um fôlego profundo que lhe encheu os pulmões de coragem, ligou-lhe.

Passaram as três horas seguintes a conversar. Ela também tinha saudades e desejava um reencontro em breve. Combinaram entre si os próximos passos a dar. Ele ia partir às oito da manhã e iria para São Jorge conhecer a fajã de São João. Despediram-se com um até já. Depois disso voltou para casa mas aquele desejo do reencontro e a angústia da espera não o deixavam dormir. Voltou a reler sobre a próxima ilha e preparou a mochila que carregava os seus haveres.

Pela manhã Jean mostrava-se entusiasmado. Na mesa do pequeno-almoço falava sobre o que tinha lido da fajã de São João. Ele, que estava de visita pela primeira vez, falava da fajã de São João como se a conhecesse. Ninguém conseguia perceber porquê ou a razão de toda aquela agitação matinal mas a amizade que os unia impelia a aceitar e mostraram-se ouvistes interessados, ainda que para eles não fosse motivo suficiente de tal rebuliço madrugador.

A viagem demorou pouco mais de duas horas, tempo demais para Jean que estava impaciente pelo reencontro. Joanne também estaria a chegar a São Jorge. Quando desembarcou, ela ainda não estava. Decidiu então esperar sentado à beira mar. Os primos tentaram perceber porque queria tanto estar sentado no cais, no meio de toda aquela agitação quando, horas antes se mostrava profundo conhecedor da fajã de São João. Apesar de tentativas sucessivas nunca conseguiram demove-lo de ficar ali sentado. Dava para perceber que estava feliz, o seu sorriso e o silêncio contemplativo denunciavam-no.

Na sua cabeça Joanne não tardaria a chegar e com isso em mente olhava o horizonte. Tinha razão. O barco já se avistava e em dez minutos Jean voltará a estar frente a frente com Joanne.

O barco pára para a saída dos passageiros. Jean levanta-se quando começam a surgir os primeiros viajantes, aparentemente mais calmo dirige-se para o local de desembarque. Joanne está a descer, tem a mão esquerda apoiada no ferro frio da protecção da ponte de descida e sorri quando ao longe vê Jean, quando os dois se encontram tocam-se na mão como fizeram na noite quando foram ver o mar. Ninguém falou, ficaram apenas a olhar-se e a sorrir durante um tempo.

Para os primos que viram este momento à distância, tudo agora parecia fazer mais sentido. Agora dava para perceber os acontecimentos da manhã. Deram-lhes espaço e permitiram que o momento decorresse sem interferências. Não tardou a que os dois se juntassem aos primos para então seguirem viagem até à fajã de São João.

Era ainda bastante a distância até à fajã. Já de carro tomaram a estrada regional imposta pela rudeza deste dragão mergulhado no atlântico.

A paisagem sempre bela, compreende uma vista panorâmica para o lugar mais alto de Portugal, o Pico. Durante a viagem os primos de Jean-Pierre aproveitaram para conhecer Joanne. O motivo do entusiasmo matinal, brincando com todos os acontecimentos que tinham ocupado a manhã.

Rapidamente avistara as indicações que os levariam à fajã de São João. A descida íngreme e estreita deixou os dois interessados com o que estaria lá em baixo. Pararam a no miradouro para contemplar a beleza ainda distante da fajã de São João.

Ao chegar estacionaram o carro por baixo do castanheiro centenário que existe naquele lugar. Havia pessoas a conversar junto ao café. Em frente repararam numa construção antiga e recheada de histórias, a ermida de São João. Logo ao lado um chafariz de 1896.

Jean conhecia a história deste lugar. A sua curiosidade e a agitação causada pela ansiedade do reencontro na noite anterior, permitiram-lhe ler sobre o património material e imaterial da fajã de São João.

Sempre juntos, Jean e Joanne, calcorrearam todos os espaços da fajã de São João. Durante a caminhada perceberam que este era um lugar especial. Já não são muitas as pessoas a viver ali todo o ano. Jean recorda-se das histórias que ouviu do seu primo durante a viagem até à Graciosa. Mas ali, notava que havia portas abertas. Por curiosidade espreitou numa delas e percebeu que é possível deixar portas abertas quando não se está efectivamente em casa. Parecias-lhe um pouco estranho. – Não será perigoso? Interrogavam-se, olhando um para o outro como se estivessem a trocar segredos.

Depois de tanto caminhar, e já cansados, abeiraram-se do cais. Iriam passar a noite em casa de uns amigos dos seus primos. Já estava tudo tratado.

Entre sorrisos e ideias soltas, Jean-Pierre decide que no dia seguinte iria pintar a imagem de Joanne e o pano de fundo seria a fajã de São João. Sentia-se inspirado por aquele lugar e Joanne, corando um pouco, sorriu anuindo.

A tarde já ia alta, o céu forrava-se de tons alaranjados, os verdes dos musgos nas pedras estavam exaltados e o horizonte era uma paleta de mil cores.

A tarde caiu, tranquila e languidamente sobre a fajã. Jean e Joanne, erguendo a cabeça em direcção ao céu, apertaram as mãos e deixaram-se absorver pela magia que lhes tomava o corpo num fim de tarde na fajã de São João.



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Quinta-feira, 15.09.11

esta história começa com «Ao entrar à porta Jean depara-se com Joanne, sentada no canto de uma mesa virada para a janela.» ...

 

 

Estava só. Naquele bar cheio de pessoas, Joanne permanecia solitária, imóvel e com os olhos fixos no mar. Não o ouvia! As cadeiras a rojar no chão, os risos das conversas dos outros, a música, retiravam-lhe o som das ondas a bater nas pedras negras. Sem dar por isso, às vezes aproximava a face do vidro da janela. Assim, debruçada sobre as pernas e tão próxima do vidro era perceptível o embaciado da respiração. Cerrava os olhos com força como se, desse modo, conseguisse ouvir o barulho das ondas.

Jean-Pierre pára. Por momentos fixa os seus olhos nos gestos suaves de Joanne. Junto à porta de entrada Jean apoia o ombro direito. Alheio às pessoas que o acompanhavam ficou ali a olhar ternamente para Joanne, como se a estivesse a contemplar.

Num gesto brusco, o seu primo segura-lhe o cotovelo, estava a chamá-lo.

-Entra! Vamo-nos sentar. Há uma mesa ali ao fundo.

Jean acedeu à proposta. Dirigiram-se para a mesa. No jogo das cadeiras, escolheu aquela que lhe permitia ver Joanne. Permanecia junto ao vidro. Todas as conversas lhe pareciam inúteis, não conseguia retirar os olhos daqueles gestos do outro lado da sala. Quis falar-lhe. Mas ao mesmo tempo teve receio de quebrar a beleza daquele momento. Ficou sentado.

Os amigos repararam no seu comportamento. Perguntaram o que seria tão importante para que ficasse assim, tão apático. Jean, um pouco embaraçado, encolheu os ombros e sorriu, evitando melhores justificações. Os outros não iriam entender os seus motivos. A beleza daqueles gestos não se explicam e Jean não queria partilhar aquele momento com ninguém.

Aquela pergunta levou a que retirasse por momentos os olhos de Joanne, pegou no seu copo e deu um trago. Decidido a participar na conversa, falou sobre a sua vinda aos Açores.

- É a primeira vez nos Açores. A minha mãe tinha-me descrito a beleza natural das paisagens mas confesso que me era difícil imaginar tudo o que me dizia. Por vezes chegava a recusar-me a acreditar que estas ilhas tivessem o encanto com que minha mãe as descrevia. Agora, estou aqui, e apesar de ainda não ter tido oportunidade de deambular por todas as belezas naturais que os folhetos turísticos apresentam, começo a perceber melhor as conversas antigas com a minha mãe. Quero conhecer todas as ilhas! Quero conhecer as pessoas, perceber os seus modos de vida, a sua história. Como era isto antigamente?

O seu primo Miguel respondeu, – Calma rapaz!, aproveita a noite! Vais ter tempo para dar a volta às nove ilhas encantadas do Atlântico. Por agora façamos um brinde! Aos Açores!! (levantando-se da cadeira e erguendo firmemente o copo).

Todos lhe seguem o gesto. E beberam como se naquela golada alimentassem os anseios de Jean e o seu interesse genuíno pelas ilhas.

No final voltaram a sentar-se e a conversa decorreu animada. Jean de tempos em tempos reparava nos gestos de Joanne. Esta continuava sentada. Já não estava inclinada sobre a janela. Também ela se encontrava agora a conversar com os amigos.

Jean reparou nos seus longos cabelos que lhe caíam sobre o peito, na forma dos seus olhos quando sorria e nos seus lábios perfeitamente torneados. Estavam pintados de vermelho. Percebia-se bem quando a luz incidia. Têm um brilho maravilhoso, pensou.

A noite prosseguia tranquila. Era uma noite de Verão. Estava quente, húmido. Para Jean às vezes tornava-se difícil respirar, não está habituado, era demasiado abafado. Ainda assim não o suficiente para o deixar desconfortável. Pelo contrário, o que ele queria nesse momento era absorver mais ar, sentir as diferenças com a sua cidade.

Nesse momento a cadeira ao lado de Joanne ficara vazia. Subitamente Jean levanta-se e dirige-se para lá. Pelo percurso entre as cadeiras pensou: mas que estou eu a fazer? O que lhe vou dizer? Mas estas dúvidas não foram motivo para o desviar do seu propósito. A sua vontade de lhe falar foi suficientemente forte para procurar a pessoa que lhe captou o olhar.

Joanne estava distraída consigo mesma, olhava atentamente para as mãos, entrelaçava os dedos uns nos outros e nem reparou na presença de Jean. Ele, em pé, confuso e nervoso pela situação tocou-lhe com a ponta dos dedos no ombro esquerdo. Ela desperta sobressaltada, ergue a cabeça na direcção de Jean e liberta um “ai” (que se estivesse arrepiada). Jean, num gesto rápido, estende as suas mãos e desdobra-se em desculpas.

- Perdão, perdão! Não te queria assustar.

Joanne nesse momento esboçou o seu sorriso que tranquilizou Jean. Ele sentou-se na cadeira vazia, ajeitando-a. Estavam agora frente a frente, os seus olhos tocaram-se demoradamente. Assim tão próximos, Joanne parecia ganhar um brilho ainda mais especial. Jean estava realmente encantado com aquela imagem.

Começaram a conversar. Os sorrisos ora de embaraço ora de cumplicidade iam surgindo no decorrer das horas. Ali, naquele momento, os dois perderam as horas. Não havia Tempo, eram apenas aquelas duas pessoas a conhecerem-se, a apaixonarem-se. (CONTINUA...)



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Segunda-feira, 01.08.11

Ali estava eu, sozinho na praia. Ao longe podia perceber os recortes de outra pessoa, estava a pescar. Ali, em pé, de cana na mão, estático. Estive a olhá-lo durante um tempo, não se mexia. Talvez não fosse um bom dia para a pesca. Mas o que importa isso! Ele continuava ali. Firme das pernas, tranquilo.

Eu sentado nas pedras, com o calor a percorrer-me todo o meu corpo, senti os olhos pesados. Pensei em dormir.

Apesar da vontade, não cedi. Voltei-me para trás e tirei um livro. Num gesto súbito, a contrariar o peso do meu corpo dormente do sol, estiquei o braço direito e apanhei o livro. Pus-me a ler.

Aos poucos o prazer da leitura fazia vibrar todo o meu corpo. Por breves instantes submergi na história, e passei a imaginar os acontecimentos, as escolhas de Meursault «O Estrangeiro». Também eu a tentar adivinhar-lhe um final.

De tempos a tempos a espuma branca do mar vinha acariciar-me os pés. Sentia o frio da água que contrastava com o meu corpo dormente e quente do sol. Quando isso acontecia sentia um pequeno arrepio a inundar-me o corpo. Pensei, é tão bom! ao contrário do «Estrangeiro» eu estava livre, enquanto ele estava preso. Eu podia ver e sentir o mar. Ele apenas podia recordar a sua última caminhada na areia escaldante. Ainda assim sentia-se livre dentro das quatro paredes que eram agora o seu quarto. No meio deste pensamento voltei a sentir vontade de dormir. Pousei o livro e recostei a cabeça para trás. Por sorte tinha a pedra perfeita para amparar o meu corpo dormente.

Fiquei assim uns instantes mas despertei quando ouvi um barco a aproximar-se da praia. Nele vinham três pessoas. O homem que nesse instante manuseava um caiaque, salta para a água e põe-se a remar. Atrás ficaram as duas mulheres.

Mesmo a chegar ao areal, quando caiaque estava por cima da onda, num gesto traiçoeiro de mar, virou-se. Vi o caiaque a bater nas pedras e noto o corpo do homem a enrolar-se na ondulação. De repente vejo-o a erguer-se novamente. Ainda tinha os remos nas mãos. Sorri de maneira trocista.

Depois de refeito do embate apressou-se a verificar o caiaque, voltando em seguida para a beira-mar. Parecia procurar qualquer coisa. As duas mulheres falavam com ele mas a distância e o som das ondas na areia não deixava perceber. Ficou ali durante um tempo. Olhava para o fundo do mar, olhava para as mulheres. De repente puxou o caiaque e remou para o barco.

Fiquei cansado de propor cenários com aqueles três. As horas passaram como uma brisa leve de primavera, era tarde e tinha fome. Voltei a pensar na história de Meursault, em como um homem que cometera um crime de sangue acabara por ser condenado pela sua vida, pela sua maneira de sentir. Fiquei satisfeito com o que tinha lido e também abandonei a praia nesse instante.



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Domingo, 10.07.11

E aí está ele! O grande tarzan! Sua magnificência, o reverendíssimo senhor tarzan. Na sua caminhada triunfante. Eu, sem quase dar conta, reparo no seu andar. O pé esquerdo gira ligeiramente para dentro. Sorrio. Cada passo seu parece aproximar-se vertiginosamente para um desfecho que eu tanto desejo. Conto os passos, um, outro, mais um e eu penso, é agora, vai beijar as pedras da calçada. Se isso acontecer não me vou conter no riso, afinal, era o que queria.

O tarzan não tombou. Ah, azar! Quem sabe um dia eu ainda consiga ver as suas fuças a desarranjarem-se nas pedras.

A esta altura muitos de vocês devem estar a pensar: este tipo pirou de vez! Eu digo-lhes, não, ainda não é desta. Estou bastante lúcido e, não, não fumei coisa nenhuma. Este tarzan existe, apenas não se chama tarzan. Tarzan é o nome artístico, o preferível…

Mas, vamos lá inventar uma história para o dia em que o tarzan veio à cidade.

Lá vinha o tarzan de pasta na mão. É engraçado, até um ignóbil como o tarzan, de pasta na mão “parece” um doutor. Bem isso para os distraídos, cá para mim não passa de mais um sinal da sua eterna fraqueza arrogante. Que, confesso, me arrelia bastante.  

Já me dei ao trabalho de reparar nos seus papéis, nas notas que tira. Mesmo que lhes queira explicar é-me difícil. Aquilo é só rabiscos. A cada palavra um risco por baixo, isto se não levar dois e três rasurados. Já para não falar de setas que vão engroçando linha após linha. Enfim uma tremenda confusão. Mas isso é compreensível. O tarzan não faz a mínima ideia do que está para ali a balbuciar. Às vezes dá-me vontade de perguntar mas o que estás para aí a fazer pá? Então mas vens aqui para desenhar? Mas quando penso nisso é em brasileiro, o que eu não entendo porquê. Será porque é mais agradável? Não sei, mas sempre que penso nisso fico a rir-me e não quero estragar tudo fazendo a pergunta. Analisando bem as coisas, não ia resolver nada, portanto não se fala mais nisso.

A cadeira rangeu. Rangeu? Ou foi…?

- Nahh, deixa de inventar, não se vê que foi a cadeira. Não! Espera, o tarzan corou. De qualquer forma vou permitir-me a dar uma gargalhada. Depois dessa interrupção talvez o tarzan diga: «como eu estava dizendo». E eu volto à conversa.

Não aguento. Olho à minha volta, procuro ao acaso algo para me distrair. Nada do que vejo me desperta interesse. Penso para mim, afinal não preciso de nada, já estava distraído. Olha que fixe.

Fixo os olhos na rua. Um carro, e mais outro. Oh, cuidado, este tinha luzes por baixo. Novamente vejo-me a mergulhar nas minhas ideias, a voz do tarzan cada vez mais longe, mais longe num último esforço de o ouvir, resisto. Mas aquele carro estranho deixou-me intrigado. Não aguento durante muito tempo. Porque diabo há-de alguém querer estragar o pobre carro com néons azuis?! Porquê?! Se é assim porque não usa luzes de natal ao pescoço? Gostos!!

Nesse instante o tarzan fez-me uma pergunta. Não percebi bem, acho que tinha que ver com comunicação. Apeteceu-me responder: oh sim está perfeito, viste aquele carro com luzes de natal?! Achei melhor não. Entendi que poderia prejudicar a nossa comunicação. Respondi então com um ligeiro aceno de cabeça e uma vocalização estranha, partilhada entre boca e nariz «um». Coisa apenas semelhante quando estamos dentro de uma gruta. Ou um grunhido, talvez!

Ele não reclamou. Ora aqui está uma bela comunicação. Com um simples ronco o tarzan fica satisfeito por mais uns instantes e eu posso continuar a olhar. Estou farto deste tarzan…

 



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Quinta-feira, 28.04.11

É de noite. As sombras das paredes brancas avançam sobre todo o meu corpo, assim, sem peias nem misericórdia. O calor do sofá sufoca-me a respiração. Tenho de sair de casa. Quero sair deste sítio, vou para a rua! É de noite, não há barulho, não vejo nada.

Um pé imita o outro e vou seguindo o caminho. Olho para o chão, como se fosse aí que se encontram as respostas para o que estou a sentir. Não é, sei-o bem, mas não consigo levantar a cabeça. Está pesada. Sinto o seu peso sobre os ombros e caminho.

Caminho languidamente pela escuridão. O silêncio ecoa na minha cabeça e atrasa-me o passo. De repente ouço um barulho que me faz despertar e voltar à consciência, olho e não vejo nada, está escuro. Merda! estou perdido!

Não sei como voltar para atrás. Como cheguei aqui? Onde estou? Novamente o eco do silêncio assombra tudo à minha volta. Tiro os sapatos e caminho descalço. A terra está húmida, é suave para os meus pés.

Ao longe ouço o barulho do mar, a sua força a bater nas rochas faz-me avançar mais rápido. Eu quero ver o mar. Eu gosto do mar. É forte e impetuoso e eu estou fraco e com o corpo dormente.

Encontrei o mar, desço rapidamente pela vereda e sento-me numa pedra a admirar a espuma branca. Aqui estou perto, sinto as gotas a respingar-me a cara. O silêncio foi-se, agora sinto-me calmo.

Perdi as horas que estive a ver o mar. Mas o que importa isso?! Agora volto para junto das paredes brancas, quem sabe as suas sombras desapareceram na minha ausência. No caminho de volta olho para as casas ao longo da estrada e os cães ladram quando me vêem. Eles não ladraram quando eu fui ver o mar. Será que não deram pela minha presença!?

Tudo está calmo agora, sopra uma leve brisa fresca que me ajuda a respirar. Eu gosto do mar!

Caminho pela noite silenciosa e encontrei o mar. Tal como um vagabundo ruma sem destino nem sentido e encontra sempre algo que merece um olhar, eu vi o mar.

Cheguei a casa. Reparo que deixei a porta escancarada, num gesto súbito, entro e vou para a cama. Eu quero dormir, quero sonhar com o mar.     


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Sábado, 02.04.11

Ontem fiz a caminhada entre a fajã de São João e a fajã dos Bodes, na encosta Sul de S. Jorge. O dia estava perfeito para caminhar, sem muito calor mas com um sol sempre agradável.

O percurso é um daqueles trilhos turísticos classificados disponíveis em S. Jorge. Demora cerca de três horas a andar com subidas bastante acentuadas mas a paisagem é, como sempre!, deslumbrante.

Desta vez o grupo era grande. Pessoalmente prefiro 4 ou 5 pessoas porque que só assim se torna possível “sintonizarmo-nos na mesma onda”…andar, olhar à volta e por uns momentos deixar-nos levar pela imensidão dos verdes, do mar e das árvores com as suas copas moldadas pelos ventos. Também gosto de ouvir aquelas estórias de “o meu avô tinha aqui uma terra e conta que…”. Ora isto é o verdadeiro mote para desenrolar o “novelo” das histórias antigas que atravessam gerações. Eu gosto disso! Com um grupo maior e heterogéneo é mais difícil de conseguir.

No caminho encontrei um senhor que me ajudou a semana passada para o meu trabalho. Estava a “picar faias” para alimentar os animais.

Ali estava o Sr. Manuel, com os seus olhos azuis, concentrado no gesto da foice. Quando o interrompi, olhou-me e sorriu. Eu devolvi o sorriso e lancei a pergunta «lembra-se de mim?». A resposta deixou-me feliz. Ele lembrava-se. Acho que isso para mim é importante…

Enquanto explicava o que tinha feito nesse dia e o que ainda faltava fazer até semear o milho eu reparava nas suas mãos ásperas, cortadas do trabalho. Aquele corpo franzino metido numas calças remendadas lançava olhares para a encosta. Que fotografia linda!

Não demorou muito tempo a convidar-me para entrar na sua casa. Pegou no garrafão e “brindou-me” (a isto não há como escapar…só se estivermos a tomar muitos medicamentos). O resto do grupo há muito que tinha seguido. Por mim, se não fosse cá por coisas tinha era continuado ali a falar. Estas pequenas coisas enriquecem as caminhadas. Cada pedaço daquela encosta tem estórias para contar. Mas segui na caminhada. Ficou a promessa de voltar à sua casa para ver como se faz uma esteira de vimes.

A esta altura a caminhada estava a meio. O mais difícil já estava para trás. Agora era só descer até à fajã dos Bodes, o destino final, onde nos esperavam com uns frangos assados. Quando se começa a descer é possível ver as formas de São Jorge. Viam-se umas casas ao fundo, era a Ribeira Seca. A vista para o mar e para o Pico estão favorecidas. É sempre agradável ver o mar.

No caminho há umas quedas de água que “roubam” muito tempo a quem gosta de fotografias de natureza. Vale a pena.

Quem algum dia se aventurar nestas caminhadas em São Jorge, não pensem na duração do trilho, nas dores de pernas ou se o telemóvel está sem rede. O meu conselho é deixem-se ir. Façam uma pausa, olhem à volta e respirem fundo. Mais! Sempre que possível parem para falar com as pessoas. Há histórias que merecem bem o tempo de as ouvir contar. Afinal, é isso que enriquece esta paisagem.



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Sexta-feira, 28.01.11

Aos poucos vou conhecendo alguns dos lugares mais bonitos desta ilha.

Ultimamente tenho tido a sorte de fazer caminhadas e ir descobrindo sítios que causam impacto visual a qualquer incauto. Está claro que não vou sozinho. Mesmo que quisesse não ia chegar nem perto dos lugares onde tenho passado.

É um prazer ir descobrindo esses locais, conhecer alguns pormenores da sua história e contemplar a paisagem em redor. Normalmente quando chego lá, fico com uma sensação de êxtase e quase sempre apetece-me dar um grito “cheguei!”, é evidente que não o faço, por vergonha dos meus amigos mas é o que me sugere o momento inicial da chegada e o primeiro relance dos olhos em torno da natureza envolvente.

Chegar lá nem sempre é fácil e as minhas calças pagam a minha falta de habilidade e medo de descer sítios íngremes e potencialmente perigosos. Quando me deparo com esse tipo de passagens quase sempre vou de rabo assente no chão e agarro-me a tudo o que for possível (às vezes quase nada!). Resultado?! quando chego a casa as calças são lavadas a 60 graus.

Todos estes locais foram, ou são, conhecidos desde sempre por pescadores destemidos, noutros casos são “atalhos” que as pessoas utilizavam antigamente para encurtar distâncias.

Tenho aproveitado para tirar umas fotografias, se bem que, sinceramente o que faço é tirar uns retratos e pouco mais, mas começo a desenvolver o gosto pela fotografia. Esta ilha, de facto, proporciona imagens brilhantes a quem gosta desse tipo de experiências.

Na minha opinião essa seria uma vertente (mais uma!) que se deveria apostar em relação ao desenvolvimento e promoção turística em S. Jorge, sobretudo ao nível da paisagem natural e social, porque tanto quanto sei, relativamente à observação de fauna, exceptuando as lagoas de água salobra da fajã Caldeira de Santo Cristo e Cubres, não foi ainda identificado mais nenhum lugar de especial importância.

São Jorge está ainda tremendamente mal organizada em relação ao turismo. Outro dia estava a ler um jornal e notei que as viagens de cruzeiro no Verão já estavam programadas. Não me lembro dos números exactos mas das 108 paragens previstas em todo o arquipélago, 63 serão em S. Miguel, à volta de 20 para o Faial e Terceira e o resto distribui-se pelas restantes ilhas. Sei que a parte que sobra para São Jorge é 1. Sim, perceberam bem, no Verão de 2011 São Jorge irá apenas receber um cruzeiro.

Pode parecer estranho mas para quem, como eu, se encontra a trabalhar num projecto de desenvolvimento local com supostas implicações ao nível do turismo é bastante fácil perceber a razão da discrepância nos números.

Existem várias razões mas, na minha opinião, a questão estrutural será a falta de organização da oferta. Em São Jorge o que não falta é potencial para desenvolver o sector e com uma oferta diversificada que nem precisava de estar limitada à sazonalidade…mas o que é que acontece, perguntam vocês?! Nada. Parece que as “sobras” das outras ilhas chegam para satisfazer a necessidade Jorgense. Aliás nem sei se podemos definir como uma verdadeira necessidade porque simplesmente não parece haver aptência de lhe sentir a falta.

Na minha opinião, e daquilo que vou experimentando, a principal causa é a excessiva partidarização das iniciativas. Tudo aqui conflui em quezílias dos dois principais partidos e verifica-se um “esvaziamento” no espírito empreendedor de diversificação do tecido económico (tendo em vista a criação de novos empregos ou gerar mais riqueza).

Outra das questões, igualmente difícil de resolver, é a falta de ligação da comunidade (poderes locais incluídos) em relação ao património. Mas nem tudo é um cenário negativo, à medida que vou contactando com as pessoas dá para perceber que o paradigma, sobretudo ao nível dos discursos, começa a alterar-se. A acontecer será uma verdadeira transformação social. Estou convencido que aos poucos a relação ambígua (por exemplo, por parte dos mais jovens e da relação destes com o património) e contraditória (dou o exemplo dos poderes locais que fazem discursos que mostram disponibilidade mas que não concretizam e tudo fica a arrastar-se no tempo) em torno do património poderá redefinir-se, desenvolvendo um conjunto de atitudes e comportamentos de vinculação que promovam o reforço da memória e da identidade colectiva.

É uma situação complexa e não quero parecer um pseudo-teórico fundamentalista que apenas sugere a instrumentalização dos elementos culturais às modas turísticas mas é um facto e não podemos relativizar a questão de que São Jorge caminha a passos largos para uma situação difícil.

Esta ilha reúne todas as condições para um desenvolvimento sustentável. Desde logo a localização (grupo central e no centro do grupo central), mar (inevitavelmente!), natureza e paisagem (que para mim são conceitos distintos), estórias interessantíssimas, comida, qualidade de vida, Tempo (aqui há tempo para ter Tempo… cada um pode construir a sua cadência subjectiva).

Enfim, estas vão sendo as minhas experiências em São Jorge e como diria um “brilhante poeta” dos nossos tempos (que por acaso é meu vizinho no Continente e felizmente (digo eu!) para a sanidade mental de todos nós nunca escreveu um livro): «mandem-me calar se não eu rebento»

Aproveitem as promoções baratuchas para os Açores e venham ver isto.



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Quinta-feira, 06.01.11

Ora cá eu estou de volta, para o inicio de um novo ano como “espécie de antropólogo” em S. Jorge. Depois de uma pausa para as festas, 2011 está aí e é preciso fazer pela vida. Considerando a experiência do ano anterior as expectativas são boas (digo isto abraçando uma tremenda ingenuidade, a esperança que uns dias de folga podem suscitar…mas essa discussão já é longa e demasiado danada para ser escrita. Se quiserem saber mais basta um convite e uma garrafa de whisky de 15 anos). Apetece-me fazer um balanço de 2010. No geral foi um ano positivo, contrariando a tendência de anos anteriores vim para um sítio que não conhecia, fiz novos amigos, de algum modo reforcei as antigas amizades (a ausência destrói mas também consolida aquilo que designamos como “amigos”) e especialmente consegui trabalhar na minha área de formação. Finalmente podia dizer que andava a trabalhar como antropólogo. Para aqueles que felizmente nunca sentiram (ou ainda não sentiram!) o sabor amargo das expectativas desmoronarem-se como uma torre de babel esta conversa diz muito pouco mas pessoalmente foi um momento único e talvez por isso considero São Jorge um sítio tão especial. Mas ser antropólogo em S. Jorge?! Do que se trata? Bem posso dizer que os primeiros seis meses foram difíceis, desgastantes e infrutíferos. Aliás devo confessar que muitas vezes pensei em comprar o bilhete de volta. Felizmente para mim tive alguns amigos que me aconselharam e me ajudaram a repensar a minha posição (a todos eles, uma vez mais, agradeço o seu apoio). A minha entrada desastrada nesta comunidade foi marcada por dois factores distintos: os imprevistos (que ninguém poderia à partida imaginar) e um sem número de incorrecções (resultantes do ponto anterior) às quais chamei atenção a quem de direito mas que nunca prestaram a devida atenção. Para evitar polémicas desnecessárias vou esclarecer apenas os imponderáveis. Em Fevereiro quando fixo a minha residência no Topo e contacto pela primeira vez com as pessoas foi desastroso. Se entrava no café as pessoas (homens) calavam-se. Era automático! As conversas eram abruptamente interrompidas e seguiam-se longos momentos de silêncio. Quando entrava dava os devidos cumprimentos de circunstância e recebia de volta um vagaroso “bom dia” ou “boa tarde”, deixando transparecer a desconfiança e o desagrado com que me debati durante os primeiros dias. Não percebia a razão de tamanho incómodo. Tinha consciência que eu era um estranho que entrava pela porta dentro e que eventualmente podia afectar as interacções normais que se geram neste tipo de espaço mas ficava por compreender porque razão alguns saíam imediatamente ou iam para a rua continuar a conversa, longe da minha terrível presença. Na minha ingenuidade o máximo que poderia acontecer era ignorarem-me, não quererem saber sequer da minha existência. Mas eles não queriam ignorar-me. Entretanto explicaram-me que aquele comportamento era deliberado. Eu fui uma ameaça! Precisamente no dia em que peguei no meu carro acabado de adquirir (ainda hoje quando penso no valor que paguei fico com tonturas. A princípio ainda pensei que o vendedor olhou para mim e viu um continental endinheirado que podia proporcionar um belo negócio. Mas não. Depois percebi que os preços que se praticam são muitas vezes sobrevalorizados. Antes da compra ainda experimentei um Peugueot com uma cor muito manhosa cuja marcha-trás tinha zarpado para parte incerta levando consigo os travões…mas tinha tecto de abrir!) … quando ia na viagem da Queimada para o Topo ouvi na rádio que estavam a ser julgados no tribunal de S. Jorge seis indivíduos por tráfico de droga. Esta notícia a princípio não me influenciava em nada e nem pensei muito nisso. Eu não podia estar mais errado! Este acontecimento foi de facto o imponderável que condicionou a minha entrada e os relacionamentos que fui tentando desenvolver para o meu trabalho. Os primeiros dias, os primeiros meses fui estudado da forma mais veemente possível. Inventaram-se todas as coisas que alguém possa imaginar sobre a minha figura. A determinada altura corria pela comunidade que eu tinha o meu currículo afixado na esquadra da PSP das Velas como o agente da PJ que estava infiltrado (quer dizer eu estava infiltrado, supostamente é para ser segredo como se vê nos filmes americanos mas o embuste era público numa esquadra perto de si). Na tentativa de me dar a conhecer, comecei a frequentar uma sociedade (para quem não conhece são associações ou grupos recreativos, de índole musical, que para ganhar uns trocos têm sempre um bar e organizam bailes tradicionais e festas desse género para animar a malta. Em todas as localidades duas ou mais e sobrevivem muito devido à rivalidade entre si. Por exemplo no Topo existem duas: a Recreio Topense e a Clube União. Os músicos que toquem numa delas se por algum motivo trocarem são logo esconjurados. Geralmente a ligação a determinada filarmónica encontra-se relacionada com a questão de tradição familiar) e durante o tempo que lá permanecia as pessoas faziam-me as mesmas perguntas duas e três vezes na mesma noite acerca do que era a antropologia e como tinha ido parar à fajã de São João e a S. Jorge. A resposta tinha de ser igual nas diferentes horas. Eu era obrigado a pensar muito bem as palavras… e tantas vezes que eu descrevi o método de pesquisa da antropologia! Eu dizia o que podia fazer um antropólogo mas nunca mencionei que fazia “investigação” porque dizer isso era sinónimo de polícia. Perdi a conta às vezes que falei sobre os meus objectivos e a forma como me propunha a executá-los. Estas e outras deram-me vontade de rir às gargalhadas. Fartei-me de rir com estas peripécias. O certo é que todos estes episódios insólitos serviram para a comunidade perceber quem era o sujeito novo. Mesmo no contacto com o terreno com as pessoas mais velhas as perguntas redundavam no mesmo. Quem era eu? O que queria deles? Para que serviam aquelas perguntas? ...tudo porque «diz-se por aí que o mestre anda aí a fazer perguntas mas afinal quer é descobrir se há droga aqui e depois quando chegar ao continente manda prender essa gente» e rematavam a conversa com «…eu falo consigo porque eu não tenho nada a esconder. Eu não sei nada disso». Mesmo depois de todas as explicações exigidas houve pessoas que me sugeriram a nunca mais as contactar porque não acreditavam em mim e não queriam ter nada haver comigo. Numa situação um individuo, em jeito de conselho ou aviso, contou-me a história de jipe da GNR que outrora fez operação STOP nesta zona da ilha e foram ameaçados, despidos e deixados a pé na beira da estrada (mais tarde quis confirmar este episódio e parece que de facto esta situação ocorreu mesmo). Alertou-me também para a possibilidade que “a lua traz pedras”. Localmente dizer que a “lua traz pedras” é um aviso que devemos pôr-nos a andar rapidamente para bem longe dali porque a qualquer momento da noite pode surgir uma saraivada de pedras. Os primeiros seis meses foram passados nesta demanda de conseguir a confiança das pessoas. Eu bem que tentava não valorizar em demasia estas situações mas condicionou sobremaneira a qualidade das informações de terreno. Por mais que tentasse estruturar as entrevistas e por mais que tentasse desconstruir esta imagem pré-concebida resultava sempre em insucesso. Apesar de difícil e tortuoso foi um caminho riquíssimo em termos pessoais e profissionais. Não desistir fez-me, indubitavelmente, crescer e aprender. Precisamente na noite de 16 de Dezembro, quando devia estar a fazer a mala e a preparar-me para a viagem no dia seguinte acabei como convidado na casa de um dos meus maiores “observadores” a beber aguardente e a conversar. A determinada altura perguntou-me se no início eu havia reparado que ele estava sempre a observar-me e a tentar perceber por onde é que eu andava? Eu disse-lhe que sim, que tinha reparado na sua atitude e que compreendia. Ali, naquele momento, eu tive a certeza que fui bem aconselhado (algo que também nunca duvidei) e sobretudo reforçou a ideia que vinha consolidando nos restantes meses, valeu a pena os momentos em que chorei de raiva (por não conseguir estabelecer e consolidar os contactos com a comunidade, por não conseguir desconstruir a imagem do PJ) …porque apesar de estar alertado para as dificuldades que podem surgir quando nos propomos ao trabalho de campo, por mais que saibamos que não é possível controlar todos os factores em disputa nas relações interpessoais e que podem surgir entraves que não são culpa do antropólogo…tudo isso em doses excessivas e extensas acaba por afectar de uma forma difícil de explicar. Chega-se ao ponto, como eu fiz repetidas vezes!!, perguntar a mim mesmo: “que merda ando eu a fazer aqui?!”. Já depois de estar em casa dos meus pais, tantos meses de comunicação por telefone, tantas saudades que sentia da família, amigos e namorada dou por mim a pensar “o que estarão aqueles tipos a fazer?”. Apesar do prazer que é voltar a casa e ser carinhosamente recebido dei por mim dividido entre duas realidades completamente distintas. Relembrando uma ideia de Nigel Barley em O Antropólogo Inocente, os antropólogos têm um vício muito grande de aborrecer os outros com estórias dos contextos que contactaram. Tudo parece pretexto para introduzir “lá eles…”. Eu dei por mim a fazer tentativas deste género. Talvez isso seja bom ou talvez não, sinceramente não sei. Quem sabe um dia consiga responder a isso, por agora apenas sei que é bom estar “entre dois mundos”. Hoje mesmo (4 de Janeiro 2011) ao cumprimentar uma pessoa da fajã de São João ele me dizia «pensava que já não ias querer voltar», eu não dei uma resposta objectiva apenas me limitei a dizer «É mais um ano» mas na minha cabeça estava a ideia de que eu tinha de voltar, ainda não fiz tudo o que queria nesta ilha, há coisas que ainda quero tentar perceber. Eu não podia deixar isto agora. Não, depois de tantos entraves e esforço. Eu sei que o conforto daqueles que gostam de mim do outro lado será sempre um refúgio onde me posso acomodar quando não tiver mais opções mas, por agora, é aqui que devo estar.



publicado por CadernoDaNoite às 00:46 | link do post | comentar | ver comentários (6)

Quinta-feira, 25.11.10

Não, o titulo não é nenhum trocadilho... Podia dizer-se que foi um verdadeiro festival de sopas! Aquilo foi de encher o prato, sentar, comer, levantar e voltar a escolher a seguinte.

Eu não podia deixar de escrever qualquer coisa desta “Festa da Sopa” porque foi uma iniciativa louvável da escola EBI do Topo na Sociedade Recreiro dos Lavradores de Santo Antão.

O mais curioso desta iniciativa foi que eu já não lembrava da última vez que comi sopa. No outro dia estava em casa, já tinha jantado há horas! e resolvi, é agora vou fazer sopa para amanhã, não passa de hoje. Comecei a cortar batatas, couve e cenoura, pus a panela ao lume com as batatas dentro…tinha tudo preparado (bem julgava eu!) e quando abri o armário onde devia estar o feijão só restava o espaço…feijão nada! Fiquei logo com um amargo de boca, parece que me tinham oferecido um doce e assim de repente voltaram a tirar. Ora isso não é nada justo?!

Voltei a guardar tudo no frigorífico e com um sorriso quase sinistro pensei: amanha compras o feijão, não tens por onde escapar.

Bem isto aconteceu na segunda-feira, hoje é quarta e o feijão contínua na loja do Sr. Nelson. Eu não fiz sopa mas hoje comi várias que dá para uns dias!

Quando entrei e vi quais as sopas que iam estar à disposição foi um regalo para os olhos.

Estava expectante que esta festa fizesse algumas das sopas que as pessoas foram mencionando no meu trabalho de campo: sopa de funcho (o funcho é uma planta de crescimento espontâneo que antigamente as pessoas usavam nos períodos de escassez de alimentos. Hoje em dia muitos ainda mantêm essa prática ora porque os hábitos se enraizaram ou porque esta planta faz uma sopa bastante saborosa e com poucos recursos) e a sopa de salsa (também muito utilizada pelos mesmos motivos).

Mas havia outras, por exemplo: sopa de couve em lume de lenha, de cogumelos, de soja, sopa da pedra, caldo verde, sopa fria de curgetes, caldo de peixe (outro exemplo de sopa tradicional) e sopa de agrião.

Acho que mencionei todas, de qualquer forma não consegui provar a totalidade. Não que não fizesse um esforço mas fiquei cheio quando acabei a sexta. Já não dava mais! O problema foi as castanhas cozinhas que nos deram de entrada…aquilo enche que se farta!

No final estava completamente satisfeito, provei as sopas que tinha maior curiosidade e o resto há-de ficar para outra vez.

O ambiente estava fantástico, professores, alunos, pais e algumas pessoas da comunidade proporcionaram momentos descontraídos nos leilões (ou arrematações como aqui são conhecidos), danças e coreografias ensaiadas por grupos de crianças e um bingo (aqui em quase todos os bailes tradicionais ou bailes de roda usam o jogo do bingo. É uma forma de angariar mais algum dinheiro e ainda alimenta a eterna esperança da “sorte”…no final apenas três fizeram bingo e a maioria exclamava “oh pá, só faltavam dois números”, eu incluído!)

Já tenho outro tema de conversa com as pessoas e das comidas tradicionais «daqueles tempos que a gente comia o que havia» só me falta provar o bolo com a raiz de “feito” (aqui as pessoas designam feito uma planta vulgarmente designada por feto, uma planta de crescimento espontâneo em zonas húmidas e nas matas). Fica uma curiosidade, antigamente quando a farinha de milho ou de trigo à venda nos comércios não era acessível a todas as famílias, usavam secar a raiz de feito, moíam e era usada na alimentação. Não conheci ainda ninguém que mantenha essa prática mas vou tentar provar…quem sabe haverá alguém que tenha tanta curiosidade de me mostrar como eu de provar!



publicado por CadernoDaNoite às 03:13 | link do post | comentar | ver comentários (2)

Olá amigos,

Confesso que começava já a sentir saudades de comunicar.

Andei debruçado em leituras e entrevistas para o meu trabalho de etnobotânica mas nem tudo é trabalho! Aliás, pelo prazer que sinto no contacto com as pessoas e a forma espectacular como tenho sido recebido, ponho em dúvida se realmente é trabalho. Quanto muito será uma tarefa que me dá bastante prazer.

Nos últimos fins-de-semana tenho aproveitado também para conhecer outras fajãs, locais lindos e cheios de estórias para contar. Penso até que o meu fascínio por descobrir novas fajãs se deve às estórias que as pessoas me vão contando. A última que visitei foi a fajã de Entre-Ribeiras e no fim-de-semana anterior a Fajã do Norte das Fajãs. As duas encontram-se na encosta Norte de S. Jorge (com vista privilegiada para as ilhas Graciosa e Terceira) e representavam o sustento de muitas famílias do Topo e Santo Antão até ao sismo de 1980.

Actualmente estão abandonadas mas são tantas as descrições e as memórias que as pessoas me contam que ao chegar e ver as ruínas das casas, os caminhos e as pedras que ladeiam as parcelas de terreno (dispostas em socalcos ou em “combradas” como aqui são designadas) é inevitável tentar imaginar como seria a vida naqueles lugares.

A paisagem deixa transparecer o esforço do trabalho e reforça o próprio isolamento. Mas dá vontade de entrar, de conhecer e quando já cansado olho em redor, respiro fundo como que numa tentativa de absorver ainda mais daquele sítio e esgotar os sentidos, aí sento-me numa pedra e relaxo. Não há trabalho nem problemas que resistam a esta experiência!

Se porventura ficarem curiosos (o que sinceramente espero que aconteça), venham a S. Jorge que arranjam-se sítios para dormir. Eu tenho apenas um quarto mas como dizem por aqui “todo o que for chão faz-se quarto de dormir”.



publicado por CadernoDaNoite às 01:50 | link do post | comentar | ver comentários (1)

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